Peter Pan e a Guerra
Ontem li para meus filhos uma edição primorosa de ‘Peter Pan’ produzida em 2020 pela Livraria Lello, em Portugal, e me encantei pelo fascínio deles com a fantasia da história. Quando peguei o livro na estante, os dois torceram o nariz, achando, no alto dos seus sete anos (quase oito, eles me corrigiriam), que Peter Pan já seria um livro bobo para eles. Insisti, dizendo que fazia muito tempo que não líamos este, e meu filho falou: ‘Estou com sono, vou fechar os olhos e só escutar’. Combinado.
Já no começo da história, eles se divertiram quando a sombra de Peter Pan se soltou de seu corpo. Os olhos de Rafael, que estavam prontos para o sono chegar, se arregalaram, e ele se sentou na cama, aproximando-se do livro, para checar na ilustração a proeza feita pela sombra: ‘Como assim a sombra saiu do corpo dele?’ Eles não se lembravam deste detalhe da história, e questionavam com a racionalidade de quem vive fora das páginas de um livro. ‘Ué, desgrudou. A Nana foi puxar Peter Pan para ele não ir embora e a sombra ficou’. A gargalhada que deram preencheu rapidamente toda a hesitação pela fantasia. Os dois grudaram ao redor de livro, buscando detalhes nas ilustrações criativas desta edição, e logo já estavam imitando o som de ‘Tic-Tac’ do relógio na barriga do crocodilo, em busca do Capitão Gancho.
Fiquei fascinada pela potência do envolvimento das crianças pela fantasia, e foi inevitável comparar com o choque da realidade na Ucrânia. A fantasia se estabeleceu como um gênero literário promissor na Europa logo após a Segunda Guerra Mundial, quando mundos imaginários, criados pelos autores, buscavam desviar a atenção das crianças da realidade que viveram nos anos anteriores. C.S. Lewis, por exemplo, escreveu os sete volumes de ‘As Crónicas de Nárnia’ de 1950 a 1956.
Voltando ao nosso tempo, lembrei da conversa com duas mães da escola, dizendo que seus filhos pré-adolescentes, já com celular próprio, passaram o fim de semana grudado nas notícias e vídeos sobre os ataques da Rússia. Disseram que os filhos estavam aflitos e ansiosos, com medo das proporções que a guerra pode tomar, representando uma geração de crianças e adolescentes que estão sendo expostos precocemente a cenas desumanas e cruéis de uma guerra – muitas vezes pelas piores fontes, através da amplitude das mídias sociais. Respiro fundo e me lembro da gargalhada diante da cena do menino que não queria crescer e perdeu a sua sombra, ao ser abocanhado pelo cachorro, quando fugia pela janela.
É claro que meus filhos não estão blindados da realidade e suas cenas estarrecedoras, como famílias sendo separadas e crianças vendo suas mães fazerem coquetel Molotov para se defenderem. Conversamos sobre a guerra, rezamos toda noite pedindo a paz e separamos, juntos, roupas, calçados e cobertores, que serão levados aos refugiados na Polônia. Mas me apego à fantasia na literatura como uma aliada para cuidar da saúde mental dos meus filhos. Prefiro que sonhem em voar para a ‘Terra do Nunca’ do que com bombardeios e sirenes. Quanto a mim, fui para a cama abastecida por este deleite da infância, ao testemunhar a fascinação dos meus filhos pela fantasia, trazida por uma contação de história antes de dormir.
Obrigada, Peter Pan.